Vamos refletir!
CARTA DE ANTONIO
“Quando eu vim para São Paulo, não
sabia ler e fui trabalhar na construção, como ajudante. Foi lá que eu senti que
precisava aprender um pouco, porque ficar a vida toda fazendo massa e
carregando areia não ia dar. Eu nem sabia que tinha escola pra adulto. Mas não
sei se ia lá não. Eu achava uma vergonha ficar exibindo que não sabia. Pensei,
então, em aprender sozinho.
Toda noite pegava um pedaço de jornal
que achava na obra, ou mesmo na rua. Fiquei muito tempo só olhando as letras.
Foi aí que eu vi que tinha letra que aparecia muito, toda hora aparecia, e
outras que eram difíceis de aparecer. Uma coisa que eu também vi é que tem
letra que não fica no fim das palavras. As do fim eram a, s, o, l, m e algumas
outras. As letras que não podiam ficar no fim eram como g, t, q, v, f. Vi
também que só poucas letras, como o, e, a, ficavam sozinhas. Tinha palavras de
duas letras, não eram muitas.
Comprei um caderno e fui fazendo
cópia das letras.
Um dia fiquei sabendo que meu nome estava escrito na identidade. Minha
namorada me mostrou onde estava o nome e eu fiquei escrevendo até saber ele todo
de cor. Comecei a achar pedaço do meu nome em todo jornal que eu pegava. Um dia
achei Antônio inteiro lá, no retrato de um homem que parecia muito importante.
Já tinha visto ele na televisão.
Agora, eu aprendi mesmo, foi quando
fiquei olhando pras placas. Na minha obra, tinha o nome da construtora: SEABRA.
Brasil era o nome que estava no caderno que eu comprei. Brasil e SEABRA ficavam
muito parecidos quando estavam escritos. Do jeito que começa Brasil acaba
SEABRA. Fui aprendendo a ler e escrever uma porção de nomes: Antônio,
Seabra,casa, São Paulo, rua, avenida, Santana, Ceará, Maria.
Fui tentando um poquinho aqui,
olhando o que já sabia, fazendo uma perguntinha ali e de repente foi como um
susto, porque estava lendo tudo. Fiquei tão satisfeito que escrevi uma carta
pra minha mãe que mora no Ceará.”
Antônio Costa de
Abreu, transcrito de Poetizando: livro do educador, do Vereda – centro de
Estudos em Educação, São Paulo, 1994.
Comentários
– Carta do Antonio
A partir
desse relato, podemos levantar alguns pontos para reflexão: para aprender a ler
e escrever, é preciso encontrar um sentido, um objetivo para essa aprendizagem.
Considerando a alfabetização um meio para melhorar de vida, Antônio
mobilizou-se para isso quando se percebeu como adulto analfabeto.
Será que
os alunos estão percebendo um sentido para aprender?
O que a
escola pode fazer para que a leitura e escrita adquiram esse sentido?
Antônio
tinha vergonha de exibir que não sabia. É muito comum crianças maiores,
adolescentes e adultos analfabetos sentirem-se assim. Às vezes, essa vergonha
se manifesta em reações de indisciplina, outras em indiferença, um “dar de
ombros”, recusar a ajuda do professor ou dos colegas e outras manifestações que
você conhece bem. Antônio conseguiu superar a vergonha e foi em busca do
conhecimento. Os alunos também podem superá-la.
O autor
do relato não comprou uma cartilha, mas lançou mão do jornal e passou a
observar o que estava escrito nas placas e no documento de identidade. É como se intuitivamente soubesse que a melhor forma
de aprender a ler e escrever é a partir dos usos que a escrita tem na sociedade: “Fiquei muito tempo só olhando as letras. Foi aí
que eu vi...”. O contato com o texto (jornal, placas, nomes) fez com que
Antônio pensasse sobre a escrita e fosse descobrindo algumas regularidades do
sistema alfabético.
Aparentemente,
Antônio aprendeu sozinho mas, na verdade, contou com a colaboração de outras
pessoas, que lhe deram informações importantes sobre a escrita: a namorada
mostrou onde estava escrito o nome – inicialmente a palavra mais significativa
– e todas as pessoas que responderam às suas perguntas (“fazendo uma
perguntinha ali e de repente...”). Com certeza, não foi esforço – e que, no
entanto, quando começa, não pára.
Concluindo,
poderíamos dizer que, para se alfabetizar, é preciso:
• compreender para que serve a escrita e atribuir
significado a ela. Isso só é possível se ela for
trabalhada na sala de aula em seus usos sociais; por isso é que os alunos
não-alfabetizados devem participar de verdadeiras situações de leitura e
escrita. O fato de não estarem alfabetizados não deve ser impedimento para que
participem e, sim, mais um motivo para isso. Quando você (ou um colega
alfabetizado) lê para o aluno, ele também é leitor, porque atribui sentido ao texto
lido. Quando você (ou um colega alfabetizado) registra as idéias do aluno
não-alfabetizado num texto coletivo, ele também é autor do texto;
• perceber o que a escrita
representa e como ela se organiza. O contato com diferentes gêneros permite que o sujeito
internalize as diferentes formas de organização textual e descubra o que a
escrita representa e como se organiza. Por isso enfatizamos o trabalho com
diferentes tipos de texto e listas de palavras organizadas, com os alunos,
dentro de um mesmo universo de significado. Com esse objetivo, também, temos
insistido para que explorem as rimas e utilizem jogos que levem ao
reconhecimento de letras, destaque de letras iniciais e finais, relação entre
som e grafia etc.
Procure sensibilizar a classe para ajudá-los. Muitas vezes você pode pensar que está
prejudicando os alunos alfabetizados, quando dedica uma parte do dia para dar
uma atenção especial aos que ainda não lêem convencionalmente. No entanto, a
responsabilidade social pelos analfabetos deve ser de todos e, na escola, junto
com os conhecimentos das diferentes áreas, também se ensina a solidariedade.
Dedicando-se aos não-alfabetizados e mobilizando os alunos já alfabetizados
para que colaborem, você estará dando um exemplo de cidadania e, quem sabe, lançando
sementes para uma sociedade mais humana.
Referência
Poetizando:
livro do educador, do Vereda – Centro de Estudos em Educação, São Paulo, 1994.
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